Município tem obrigação de resolver situação de animais abandonados

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Por Jomar Martins.
Extraído de Consultor Jurídico (Conjur)

A tutela da saúde e do meio ambiente está no âmbito de competência do município, na forma dos artigos 23, inciso II e VI; e 30, inciso I, da Constituição da República. Assim, se o ente se omite, o Poder Judiciário pode estabelecer medidas que levem ao cumprimento dos seus deveres. O entendimento levou a 2ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul a manter, no mérito,sentença que determinou ao município de São Sebastião do Caí construir um centro para acolher e tratar animais abandonados.
Após ser condenada na Ação Civil Pública movida pelo Mistério Público, a administração alegou, na apelação em reexame necessário, que não tem como cumprir a obrigação diante da falta de projeto técnico e de dotação orçamentária. Ainda: teme que a decisão judicial acabará por retirar ou reduzir a verba destinada à saúde da população.
A relatora do recurso, desembargadora Lúcia de Fátima Cerveira, ponderou que o direito à saúde e ao meio ambiente equilibrado implica no reconhecimento de deveres por parte do Poder Público, que deve adotar políticas e práticas públicas voltadas à promoção destes direitos fundamentais. "O argumento defensivo pautado na reserva do possível, ou seja, nas limitações de ordem orçamentária para a implementação de determinadas políticas públicas, não é absoluto no caso em tela", disse no acórdão.
Ela lembrou que, no plano internacional, o Brasil é signatário da Declaração Universal dos Direitos dos Animais, proclamada pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) em janeiro de 1978. O documento diz, em seu artigo 6º, letra b, que o abandono de um animal é ato cruel e degradante. No âmbito interno, a Constituição (artigo 225, parágrafo 1º, inciso VII) diz que o Poder Público tem o dever de proteger a fauna e a flora, "sendo vedadas as práticas que provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais à crueldade".
Mantido o mérito da sentença, a relatora deu provimento ao recurso para estender de 60 para 150 dias o prazo para elaboração dos programas e projetos definidos em sentença. Além disso, a dotação de valores específicos para a implementação e manutenção dos projetos seja incluída na Lei Orçamentária Anual de 2015 no mesmo prazo.
Fonte: MARTINS, Jomar. Revista Consultor Jurídico, 18 Ago 2014. Disponível em http://www.conjur.com.br/2014-ago-18/municipio-nao-omitir-abandono-animal-tj-rs. Acesso em 18 Ago 2014.

Repartição de Royalties de Petróleo

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Fonte: AMORIM. Petróleo.... Ecossocialismo ou Barbárie. 28 fev. 2013. Disponível em:<http://goo.gl/LqD10Q >. Acesso em: 20 maio. 2014. 


Repartição de Royalties de Petróleo

Karina Gomes Cherubini

O petróleo é um combustível fóssil, não renovável, originado da decomposição, durante milhões de anos, de animais, plantas e outras matérias orgânicas “soterrados pelos movimentos da crosta terrestre sob a pressão das camadas de rochas e pela ação do calor” (O QUE É...,2014). Segundo a Lei nº 9.478/97 (BRASIL, 1997), é todo e qualquer hidrocarboneto líquido em seu estado natural, a exemplo do óleo cru e condensado.

Localiza-se em terrenos sedimentares, formados por camadas ou lençóis porosos de areia, arenitos ou calcários. O petróleo, depois de formado, “passa através dos poros das rochas, até encontrar outra rocha que o aprisione, formando a jazida” (O QUE É...,2014).

No Brasil, foi comemorada a sua descoberta em área denominada pré-sal, que implica pesquisas a profundidades consideráveis. A exploração de petróleo nessas áreas é regulada pela Lei nº 12.351/2010 (BRASIL, 2010), que define área do pré-sal como sendo a região do subsolo formada por um prisma vertical de profundidade indeterminada, com superfície poligonal e outras regiões que venham a ser delimitadas em ato do Poder Executivo, de acordo com a evolução do conhecimento geológico. O petróleo é a principal fonte primária para produção de energia mecânica, térmica ou elétrica (CHRISTMANN, 2014, p. 2)

Nem todo o Município ou Estado brasileiro conta com reservas petrolíferas em seu território. A produção do petróleo e de gás natural garantia o pagamento de compensação financeira aos municípios afetados, seja no transporte do óleo bruto extraído, seja na utilização de portos para escoamento ou porque as reservas ficavam em sua extensão territorial. Não só a eles. Também aos Estados correspondentes (ou ao Distrito Federal) e a órgãos da administração direta da União, como Marinha, Ministérios de Minas e Energias, do Meio Ambiente e de Ciências e Tecnologias (CHRISTMANN, 2014, p. 19).

Assim, os Municípios possuidores das reservas petrolíferas (produtores) ou que serviam para fins de embarque e desembarque da produção, tinham forte reforço orçamentário, a partir dos royalties, distribuídos a partir de um critério geográfico, decorrente da “proximidade dessas localidades em relação ao lugar onde são desenvolvidas as atividades petrolíferas” (PINTO, CORONEL, 2013).

Tais compensações, pagas pelas concessionárias do campo de petróleo (PINTO, CORONEL, 2013), visavam a eventuais adversidades surgidas para os entes federados envolvidos, inclusive ambientais (CHRISTMANN, 2014, p. 19), como, por exemplo, pela possibilidade de derramamento do óleo no momento do transporte, ou mesmo para amenizar o impacto depressivo sobre suas economias quando ocorresse o fim da exploração do recurso não renovável (SERRA, apud PINTO, CORONEL, 2013); foram denominadas royalties, a partir da palavra inglesa royalty, que significava pagamento ao rei pela extração de minerais (PINTO, CORONEL, 2013).

A previsão legal encontra-se no artigo 20, §1º, da Constituição Federal (BRASIL, 1988), que assim dispõe:

§ 1º - É assegurada, nos termos da lei, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios, bem como a órgãos da administração direta da União, participação no resultado da exploração de petróleo ou gás natural, de recursos hídricos para fins de geração de energia elétrica e de outros recursos minerais no respectivo território, plataforma continental, mar territorial ou zona econômica exclusiva, ou compensação financeira por essa exploração.

Também tem previsão nas Leis Federais nº 7.990/89 (BRASIL, 1989) e 8.001/90 (BRASIL, 1990). Além dos royalties, há outras três formas de “renda mineral estabelecida pelo poder público para os interessados em explorar o potencial energético do Brasil” (PINTO, CORONEL, 2013), previstas no artigo 45 da Lei nº 9.478/97 (BRASIL, 1997). Igualmente nos termos dessa lei, o pagamento de royalties é obrigatório e mensal, a partir da produção comercial do campo licitado, embora, na prática, seja feita com defasagem de dois meses entre extração e distribuição dos recursos (LEI..., 2013).

Como tal compensação financeira não estava atrelada a finalidade específica, contando apenas com algumas vedações de aplicação, como pagamento de dívida e quadro permanente de pessoal (Lei nº 7.990/89, art. 8º), no mais cabia ao beneficiário o planejamento e a aplicação dos royalties. Em alguns casos, houve um melhoramento da situação econômica do ente federado; em outros, apesar do favorecimento orçamentário, o ingresso de recursos econômicos não retornava à população em forma de obras públicas, educação ou saúde, enfim, em melhores condições de vida.

Se a posse e a exploração de grandes reservas de petróleo não garantem por si sós a melhoria dos indicadores de um país (MARTINS; SOGARI; RUDNICKI apud CHRISTIMANN, 2014, p. 2), quanto mais de um município, que nem sempre tem, comparativamente à União, adequada capacidade técnica e gerencial. Como sustentam MARTINS, SOGARI e RUDNICKI, citados por CHRISTMANN ( 2014, p. 19), “os municípios mais dependentes da rendas petrolíferas foram também os que menos conseguiram reverter resultados desfavoráveis em termos de indicadores socioeconômicos”.

Nesse contexto, persistem debates e celeumas quanto à modificação da legislação sobre Política Energética Nacional, para modificar a forma de repartição dos royalties do petróleo, deixando de repassá-la somente aos entes federativos de alguma forma vinculados às reservas. Tanto que houve o aforamento de ações diretas de inconstitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal pelo Governador do Estado do Rio de Janeiro (ADI nº 4917, Mesa Diretora do Poder Legislativo do Rio de Janeiro (ADI nº 4.918), pelo Governador do Espírito Santo (ADI nº 4.916), e pelo Governador de São Paulo (ADI nº 4.920) (OLIVEIRA, 2014).
Como previsto no artigo 49 da Lei nº 12.351/2010, os royalties que caberiam à União (devido à lavra ocorrer na plataforma continental, no mar territorial ou na zona econômica exclusiva), deduzidos aqueles destinados aos seus órgãos específicos, bem como os royalties das áreas do pré-sal contratadas sob o regime de concessão, destinados à administração direta da União, passarão a compor um Fundo Social voltado ao desenvolvimento social e regional, com destinação para as áreas de saúde e educação, entre outras.

As justificativas foram de que o petróleo era do país (“O petróleo é nosso”) e que havia necessidade de maior democratização no processo de distribuição de rendas (PINTO, CORONEL, 2013), com correção da concentração da riqueza entre municípios e estados na área de influência de exploração e produção. Com isto, entendeu-se pela repartição das compensações financeiras entre todos os municípios e estados, para aplicação em saúde e educação e outras finalidades legais.

Se a repartição evita desigualdades entre os Municípios, combatendo o “determinismo físico”(SERRA; MOTHÉ; MORETT, apud PINTO, CORONEL, 2013) de sua distribuição, de certa forma, olvida o caráter indenizatório da compensação (HARADA, 2014).

É verdade que são objetivos da República Federativa do Brasil a erradicação da pobreza e a redução da desigualdade social e regional. Entretanto, não será somente a repartição dos royalties – a “galinha dos ovos de ouro”, como bem colocado na charge, que permitirá alcançar tais objetivos.

Importa rever a existência de municípios sem condições de independência administrativa e financeira, aprovados em sua criação, incorporação, fusão ou desmembramento sem críveis Estudos de Viabilidade Municipal, tanto que passam a depender exclusivamente de repasses federais.

Importa rever a aplicação das verbas públicas, pois sejam provenientes da distribuição de royalties ou de impostos, em forma de Fundo de Manutenção e Desenvolvimento de Educação Básica e outros programas federais, como o Programa Nacional de Alimentação Escolar, o seu desvio é que impede a redução da pobreza e da desigualdade social.

E também rever os programas assistenciais, sem prazo de validade, que não estimulam atividades econômicas por parte dos beneficiados, podendo ter relação direta com a nova geração, conhecida como “nem-nem” (nem estuda nem trabalha).

A distribuição dos royalties a quem não tem qualquer participação ou pertencimento à reserva petrolífera, portanto, que está “fora da lógica da atividade petrolífera e de seus consequentes impactos” (PINTO, CORONEL, 2013), de certa forma, poderá ser um programa assistencialista aos entes federativos, que nem produzem riquezas, nem tem como sustentar-se. E o mais grave de tudo, pouco provável que venham a efetuar estudos e pesquisas em busca da substituição dos combustíveis não renováveis, considerando o custo decorrente do desgaste dos bens ambientais (CHRISTMANN, 2014, p. 17).

Referências:

BRASIL, 1988. Constituição da República Federativa do Brasil. Diário Oficial da União, 05 Out 1988, p. 1 (anexo).

BRASIL, Lei 7.990, de 28 Dez 1989. Institui, para os Estados, Distrito Federal e Municípios, compensação financeira pelo resultado da exploração de petróleo ou gás natural, de recursos hídricos para fins de geração de energia elétrica, de recursos minerais em seus respectivos territórios, plataformas continental, mar territorial ou zona econômica exclusiva, e dá outras providências. (Art. 21, XIX da CF). D.O.F.C. de 29 Dez 1989, P. 24782.

BRASIL, Lei nº 8.001, de 13 Mar 1990. Define os percentuais da distribuição da compensação financeira de que trata a Lei nº 7.990, de 28 de dezembro de 1989, e dá outras providências. Diário Oficial de14 Mar 1990, P. 5166.

BRASIL, Lei nº 9.478, de 06 Ago 1997. Dispõe Sobre a Política Nacional, as Atividades Relativas ao Monópolio do Petróleo, institui o Conselho Nacional de Política Energética e a Agência Nacional do Petróleo (ANP) e dá outras providências. Diário Oficial da União, de 07 Ago 1997, P. 16925

BRASIL, lei nº 12.351, de 22 dez 2010. Dispõe sobre a exploração e a produção de petróleo, de gás natural e de outros hidrocarbonetos fluidos, sob o regime de partilha de produção, em áreas do pré-sal e em áreas estratégicas; cria o Fundo Social - FS e dispõe sobre sua estrutura e fontes de recursos; altera dispositivos da Lei no 9.478, de 6 de agosto de 1997; e dá outras providências. Diário Oficial da União, 23 Dez 2010.

CHRISTMANN, Luiza Landerdahl. Fontes de energia e sua regulamentação. Temas atuais de Direito Ambiental. Palhoça: UnisulVirtual, 2014.

CHRISTMANN, Luiza Landerdahl. Sustentabilidade e matrizes energéticas no Brasil. Palhoça: UnisulVirtual, 2014.

HARADA, Kiyoshi. Royalties do pré-sal. Revista Âmbito Jurídico, Rio Grande, s/d. Disponível em< http://www.ambito-juridico.com.br/site/?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=10959&revista_caderno=26>. Acesso em 04 Ago 2014.

LEI dos royalties é publicada no “Diário Oficial da União”. G1 Política, 15 Mar 2013. Disponível em < http://g1.globo.com/politica/noticia/2013/03/lei-dos-royalties-e-publicada-no-diario-oficial-da-uniao.html>. Acesso em 04 Ago 2014.

OLIVEIRA, Samuel Cunha de. A distribuição dos royalties do petróleo entre os entes federados. Uma análise da Lei nº 12.734/2012. Jus Navigandi, Teresina, ano 19, n. 3958, 3 maio 2014. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/27646>. Acesso em: 3 Ago. 2014.

O QUE é petróleo? Unicamp- Departamento de Engenharia de Petróleo. Disponível em http://www.dep.fem.unicamp.br/drupal/?q=node/27. Acesso em 04 Ago 2014.

PINTO, Nelson Guilherme Machado. CORONEL, Daniel Arruda "Se o petróleo é nosso, porque os Royalties petrolíferos beneficiam apenas alguns municípios?". In: Observatorio de la Economía Latinoamericana, Número 179, 2013. Disponível em< http://www.eumed.net/cursecon/ecolat/br/13/royalties-petroleo-brasil.hmtl>. Acesso em 04 Ago 2014.

Existe relação entre células-tronco, biossegurança, biodireito e bioética?

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Fonte:http://www.mundobiologia.com/2014/05/celulas-tronco-o-que-sao-e-quais-questoes-eticas-estao-envolvidas.html



Existe relação entre células-tronco, biossegurança, biodireito e bioética?


Karina Gomes Cherubini



O artigo 5º da Lei nº 11.105/2005 (BRASIL, 2005) permite a pesquisa e terapia com utilização de células-tronco embrionárias obtidas de embriões humanos produzidos por fertilização in vitro e não utilizadas no respectivo procedimento, desde que sejam embriões inviáveis ou estejam congelados há mais de três anos. Entretanto, exige o consentimento dos genitores (§1º) e que o projeto de pesquisa ou terapia seja submetido à apreciação e aprovação dos comitês de ética em pesquisa das instituições que se propõem a realizá-lo (§2º).

Tal disposição perpassa a liberdade de expressão científica, que constitui direito fundamental garantido pelo artigo 5º, inciso IX, da Constituição Federal (BRASIL, 1988). É complementada pelas disposições do artigo 218, §1º, da Carta Magna (1988), que coloca como dever do Estado promover e incentivar o desenvolvimento científico, a pesquisa e a capacitação tecnológicas, sendo que a pesquisa científica básica deve receber daquele tratamento prioritário.

As células-tronco caracterizam-se pelo poder de divisão e de autocópias, o que as leva a ter potencial para a cura de doenças e para a regeneração de tecidos e órgãos doentes (CHRISTMANN, 2014, p. 20). Como explicam Leal Junior, Sanomya e Ferraro, citados por Christmann (2014, p. 18),

“são elementos primários encontrados em todos os organismos multicelulares que, devido à sua plasticidade, retêm a habilidade de se renovar por meio da divisão celular mitótica, podendo diferenciar-se em uma vasta gama de tipos de células especializadas e fazer cópias de si mesmas.”

Quando contidas no pré-embrião e no embrião, células totipotentes, têm capacidade de formar um novo indivíduo completo (CHRISTMANN, 2014, p. 18). Por isso sua manipulação requer cuidados e limites, para que não sejam violados direitos fundamentais, ainda que em nome da ciência.

Uma dos tópicos que envolve o tema é o descarte dos embriões que não mais se prestam às pesquisas. Nesta situação encontram-se os embriões considerados inviáveis por questões relacionadas com a própria técnica empregada, ou após certo período de congelamento, que reduz significativamente a possibilidade de gerar um novo ser humano (CHRISTMANN, 2014, p. 24). Por vezes, são deixados em “abandono e entulhando os serviços” nas clínicas de fertilização (CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA, 2013), já que “nem sempre os geradores dos embriões retornam para transferir os criopreservados” (LUNA, 2007).

É importante salientar que a Lei nº 11.105/2005 (BRASIL, 2005) somente permite a utilização de embriões excedentes ou supranumerários, isto é, aqueles que não foram implantados após procedimentos de fertilização in vitro, para não gerar gravidezes múltiplas (LOUREIRO, apud CHRISTMANN, 2014, p. 24). Igualmente, pela Resolução nº 2.013/2013 do Conselho Federal de Medicina (2013), o número máximo de embriões que podem ser transferidos para a receptora não pode ser superior a quatro, estando esse número relacionado à idade da mulher. Os embriões restantes podem ser criopreservados (congelados) em cilindros de nitrogênio e guardados para nova tentativa, se não ocorrer gravidez (LUNA, 2007).

Assim, graças ao avanço das técnicas reprodutivas, verifica-se o surgimento de um novo ente legal e social, o embrião extracorporal criado por fertilização in vitro, (STRATHERN, apud LUNA, 2007), que inspira reflexões sobre começo de vida, sendo terreno com forte interferência religiosa.

Tanto que no acórdão do Supremo Tribunal Federal proferido na Ação Direta de Constitucionalidade nº 3510-0/DF, em 2008 (BRASIL, 2008), foi descaracterizada a situação de aborto, com base no Direito Civil, que preconiza que a personalidade civil da pessoa começa com o nascimento com vida, assegurando-se, todavia, os direitos do nascituro (BRASIL, 2002).

Não obstante, os debates instalados são para sustentar (ou rebater) que a vida começa com a fecundação; para outros, no momento da fixação do zigoto no endométrio, fenômeno conhecido como nidação. Conforme for aceito um desses momentos, a análise da manipulação dos embriões e sua licitude, pela atual normativa vigente, é alterada profundamente, podendo ser vista como manipulação científica do próprio ser humano, já como sujeito de direitos (CHRISTIMANN, 2014, p. 18; 20) ou apenas de material celular ou biológico, cujo uso em pesquisas é lícito (LUNA, 2007).

Para a análise de todas essas questões, importante a orientação da bioética, definida como “ramo da ética que investiga os problemas que derivam especificamente da prática médica e biológica, o que inclui os limites das intervenções e experiências aceitáveis, além da razoabilidade da pesquisa genética e das suas aplicações” (SOARES, SOARES, MARQUES, 2014).

Sob o ponto de vista do biodireito, compreendido como “ramo do Direito que trata da teoria, da legislação e da jurisprudência relativas às normas reguladoras da conduta humana em face dos avanços da Medicina e da Biotecnologia” (SOARES, SOARES, MARQUES, 2014), tem-se a orientação ao respeito ao direito à vida, direito à saúde e ao planejamento familiar, como enfocado na referida decisão do Supremo Tribunal Federal.

Assim visto, verifica-se que a submissão do projeto de pesquisa ou terapia de embriões a um comitê de ética busca com que seja analisado sob o viés da bioética e do biodireito. Entretanto, o comitê de ética, ainda que represente a sociedade perante os projetos de pesquisa, com total autonomia para emitir seu parecer, favorável ou não (OLIVEIRA JUNIOR, 2014), é da própria instituição e esta pode ter interesse no projeto por diversos motivos. Em segundo lugar, nem a Lei Federal nº 11.105/2005 (BRASIL, 2005) nem seu regulamento, Decreto Federal nº 5.591/2005 (BRASIL, 2005) apontam a composição mínima dos comitês ou prevêem eventual controle externo sobre suas decisões ou possibilidade de recurso.

Pode-se pensar que o legislador foi comedido no regramento, comparado com a prática geral de definir princípios, objetivos e instrumentos de políticas públicas, como pode ser observado em outras tantas legislações (CHRISTMANN, 2014, p. 7), mas assim agiu, no caso dos comitês de ética em pesquisa, diante da autonomia das instituições, se estas se tratassem de universidades. Todavia, também nada foi legislado em relação a outras instituições de pesquisa. Apenas a Resolução nº 196/96 do Conselho Nacional de Saúde (1996) aponta a composição dos comitês de ética em pesquisa e a necessidade de registro na Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep), esta vinculada ao Ministério de Saúde.

Além disso, o histórico de tramitação da Lei nº 11.105/2005 indica que a falta da costumeira “exuberância regratória”, para usar as palavras do Ministro Ayres Britto (BRASIL, 2008), deu-se sobretudo pela pressa em aprovar a normativa que iria liberar o comércio de soja transgênica. Buscou compatibilizar flexibilizações, a partir de dispensas de exigências legais, concedidas por medidas provisórias, com a normatização sobre biossegurança (AZEVEDO, apud CHRISTMANN, 2014, p. 10) e, com isso, deixou de aprofundar aspectos fundamentais, de ordem material ou ética, que podem afetar a manipulação genética de seres vivos e a biossegurança.





REFERÊNCIAS

BRASIL, Constituição Da República Federativa Do Brasil - 1988. Diário Oficial da União de 05/10/1988, P. 1 (Anexo)

BRASIL, Lei nº 10.406, de 10 Jan de 2002. Institui o Código Civil. Diario Oficial da União, 11 Jan 2002, P. 1.

BRASIL, Lei nº 11.105, de 24 Mar 2005. Regulamenta os incisos II, IV e V do Par. 1º do Art. 225 da Constituição Federal, Estabelece Normas de Segurança e Mecanismos de Fiscalização de Atividades que envolvam Organismos Geneticamente Modificados - OGM e Seus Derivados, cria o Conselho Nacional De Biossegurança - CNBS, Reestrutura a Comissão Técnica Nacional de Biossegurança - CTNbio, Dispõe sobre a Política Nacional de Biossegurança - PNB, revoga A Lei Nº 8.974, de 5 de Janeiro de 1995, e a Medida Provisória Nº 2.191-9, de 23 de Agosto de 2001, e os Arts. 5º, 6º, 7º, 8º, 9º, 10 e 16 da Lei Nº 10.814, de 15 de dezembro de 2003, e dá outras providências. Diário Oficial da União, 28 Mar 2005, p. 1 28/03/2005, P. 1

BRASIL, Decreto nº 5.591, 22 Nov 2005. Regulamenta dispositivos da Lei no 11.105, de 24 de março de 2005, que regulamenta os incisos II, IV e V do § 1odo art. 225 da Constituição, e dá outras providências. Diário Oficial da União, de 23 Nov 2005, P. 1.

BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconsticuionalidade nº 3.510. Relator: Min. Carlos Ayres Britto. Julgamento em 29/05/2008. Diário da Justiça Eletrônico, Brasília, 28 Mai. 2010. Disponível em: http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=611723. Acesso em 06 Ago 2014.

CHRISTMANN, Luiza Landerdahl. Biotecnologia, biossegurança e bioética: a vida em questão. Temais Atuais de Direito Ambiental. Palhoça ; Unisul Virtual, 2014a.

CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA, Resolução nº 2.013/2013, de 16 Abr 2013, publicada no Diário Oficial da União de 09 de maio de 2013, Seção I, p. 119. Disponível em http://www.portalmedico.org.br/resolucoes/CFM/2013/2013_2013.pdf

CONSELHO NACIONAL DE SAÚDE. Resolução CNS nº 196/96, de 10 Out 1996. Disponível em <http://conselho.saude.gov.br/web_comissoes/conep/aquivos/resolucoes/resolucoes.htm. Acesso em 06 Ago 2014.
LUNA, Naara. A personalização do embrião humano: da transcendência na biologia. Mana vol.13 no.2 Rio de Janeiro Oct. 2007. Disponível em http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0104-93132007000200005&script=sci_arttext. Acesso em 06 Ago 2014.

OLIVEIRA JUNIOR, Eudes Quintino. A Ética, A Bioética e os Procedimentos Com Células-Tronco. Disponível em http://www.relampa.org.br/detalhe_artigo.asp?id=100. Acesso em 06 Ago 2014.
SOARES, Saulo Cerqueira de Aguiar, SOARES, Ivna Maria Mello, MARQUES Herbert de Souza . Reflexões em ética, bioética e biodireito. Revista Âmbito Jurídico, Rio Grande, s/d. Disponível em < http://www.ambito-juridico.com.br/site/index.php?artigo_id=7601&n_link=revista_artigos_leitura>. Acesso em 06 Ago 2014.






Bioética e biodireito como limites à liberdade de expressão científica

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Bioética e biodireito como limites à liberdade de expressão científica

Karina Gomes Cherubini


A liberdade de expressão científica é prevista no artigo 5º, inciso IX, da Constituição Federal (BRASIL, 1988), que reza:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

IX - é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença; (grifos não originais)


Dessa forma, verifica-se que a liberdade de expressão está no mesmo patamar de hierarquia de outros direitos assegurados, entre eles, direito à vida e à segurança, como destacado no texto legal supra transcrito. A liberdade de expressão caracteriza-se, segundo Pires (2014), por ser “inalienável, irrenunciável, intransmissível e irrevogável, essencial para que se concretize o princípio da dignidade humana”.

Especificamente sobre a liberdade de expressão científica, pertinente recordar que uma das características da modernidade foi o avanço da ciência e sua aplicação na técnica. O desenvolvimento da tecnologia está profundamente imbricado com as modificações sociais, políticas, econômicas e culturais ocorridas a partir da modernidade, cujo marco histórico remete à Revolução Francesa. (CHRISTMANN, 2014b, p.16; 2014c, p.1). As descobertas da ciência alteraram, assim, o modo de vida em sociedade, estando, de certa forma, relacionadas com o aumento do consumo e da produção industrial, com a sobrevida dos seres humanos, com a diminuição da mortalidade infantil, etc.

No entanto, se inicialmente vigorava o postulado de neutralidade da ciência, este não mais sobrevive. Tal tese, ao isolar a ciência da esfera valorativa, colocava-a fora do alcance de questionamentos em termos de valores sociais e permitia que fosse posta como um valor universal (OLIVEIRA, 2008, p. 98). Contudo, a ciência passou a ser questionada inclusive quanto às fontes de financiamento e a intenção do investimento, público ou privado, em determinados objetos e linhas de pesquisa (CEOLIN, 2011, p. 9).

Como expressa Oliveira (2008, p. 112), a ciência deixou de perseguir o conhecimento como um fim em si mesmo para buscar um conhecimento capaz de gerar tecnologias ou aplicações úteis e rentáveis. Passou a ser regida por uma lógica mercantil, onde o critério fundamental na avaliação de projetos é a rentabilidade.

Na mesma esteira de pensamento, determinados produtos do conhecimento científico passaram a afetar o meio ambiente e a colocar em risco tanto a vida como a segurança. A manipulação de vírus em laboratórios exemplifica a questão, como a mistura de genes da "gripe das aves" H5N1 e o da "gripe suína" H1N1, efetuada por cientistas chineses, considerando a possibilidade de falha no sistema de retenção onde estão armazenados (VÍRUS..., 2013). Ou ainda a produção de biocombustíveis, diante da disputa de espaço físico com plantações que atenderiam à produção de alimento à população (CHRISTMANN, 2014c, p. 22), o que coloca em risco a segurança alimentar. Dessa maneira, “o direito à pesquisa e o avanço da tecnociência, simultaneamente, promovem e agridem direitos fundamentais” (CEOLIN, 2011, p. 10).

Diante deste contexto de preocupação com o meio ambiente e saúde/segurança humana, bem assim garantia dos demais direitos fundamentais, inclusive quanto à utilidade que podem ser extraídas de algumas dessas técnicas (CHRISTMANN, 2014a, p. 1), começam a destacar-se a bioética e o biodireito.

Tais ramos de conhecimento são extremamente relevantes para que o exercício da liberdade de expressão científica se desenvolva nos limites dos preceitos externados pela Constituição Federal. Vão impor reflexões quanto às limitações do que pode ou não pode ser feito pela ciência, ou seja, “impor limites de segurança e limites éticos, em contraposição aos benefícios que o conhecimento científico poderia proporcionar” (CHRISTMANN, 2014a, p. 4).

A bioética orienta “o saber e o fazer” das ciências biológicas e biomédicas em geral, por critérios e valores éticos, que assegure o respeito à dignidade e à vida de seres humanos, ao bem estar animal e a todos os modos de vida (CHRISTMANN, 2014a, p. 26). Seu nascimento como área do conhecimento remonta à segunda metade do século XX (LOUREIRO, apud CHRISTMANN, 2014a, p. 26).

Já o biodireito, segundo Christmann (2014a, p. 28), deve regulamentar as atividades científicas, considerando os parâmetros constitucionais para estabelecer as medidas que deverão ser tomadas para garantir a biossegurança de todos os seres vivos. Irá orientar o legislador na produção de novas normas e aos juristas, na sua aplicação, diante de previsíveis conflitos entre liberdade de expressão científica e demais direitos fundamentais, bem como a contraposição entre meio ambiente equilibrado e outros direitos sociais.

Juntos, bioética e biodireito, devem orientar aos tomadores de decisões, para que adotem postura de proteção à dignidade do homem e da vida em geral, limitando tanto a atividade científica como aos demais direitos, para garantia de um mínimo socioambiental como bem intergeracional, que não pode ser esvaziado, quer em nome da liberdade do pensamento científico, quer para a satisfação desproporcional ou não sustentável de direitos fundamentais, que gerem o esgotamento de recursos naturais.



REFERÊNCIAS

BRASIL, Constituição da República Federativa Do Brasil - 1988. Diário Oficial da União de 05/10/1988, P. 1 (Anexo)

CEOLIN, Lisianne Pintos Sabedra. Liberdade de Expressão da Atividade Científica como direito Fundamental e Dever no Sistema Constitucional Brasileiro:uma análise no marco do Estado Socioambiental. 2011, 229 f. Tese (Doutorado) - Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, ao Programa de Pós-Graduação em Direito, área de concentração Fundamentos Constitucionais do Direito Público e do Direito Privado, Porto Alegre. Parcialmente disponível em <http://hdl.handle.net/10923/2494> . Acesso em 06 Ago 2014.

CHRISTMANN, Luiza Landerdahl. Biotecnologia, biossegurança e bioética: a vida em questão. Temais Atuais de Direito Ambiental. Palhoça ; Unisul Virtual, 2014a.

CHRISTMANN, Luiza Landerdahl. Fontes de energia e sua regulamentação. Temais Atuais de Direito Ambiental. Palhoça ; Unisul Virtual, 2014b.

CHRISTMANN, Luiza Landerdahl. Sustentabilidade e matrizes energéticas no Brasil. Temais Atuais de Direito Ambiental. Palhoça ; Unisul Virtual, 2014c.

OLIVEIRA, Marcos Barbosa de. Neutralidade da ciência, desencantamento do mundo e controle da natureza. Revista Scientiae Studia, São Paulo, vol. 6, n. 1, p. 97-116, 2008. Disponível em http://www.scielo.br/pdf/ss/v6n1/a04v06n01.pdf. Acesso em 06 Ago2014.

PIRES, Maísa Rezende. O equilíbrio necessário para que a liberdade de expressão coexista com outros direitos. Revista Âmbito Jurídico. Rio Grande, s/d. Disponível em<http://www.ambito-juridico.com.br/site/?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=10790&revista_caderno=9>. Acesso em 06 Ago 2014.

VÍRUS da gripe aviária criado em laboratório desperta medo. Revista Info, 03 Mai 2013. Disponível em <http://info.abril.com.br/noticias/ciencia/virus-da-gripe-aviaria-de-laboratorio-desperta-medo-03052013-38.shl>. Acesso em 06 Ago 2014.