Existe relação entre células-tronco, biossegurança, biodireito e bioética?

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Fonte:http://www.mundobiologia.com/2014/05/celulas-tronco-o-que-sao-e-quais-questoes-eticas-estao-envolvidas.html



Existe relação entre células-tronco, biossegurança, biodireito e bioética?


Karina Gomes Cherubini



O artigo 5º da Lei nº 11.105/2005 (BRASIL, 2005) permite a pesquisa e terapia com utilização de células-tronco embrionárias obtidas de embriões humanos produzidos por fertilização in vitro e não utilizadas no respectivo procedimento, desde que sejam embriões inviáveis ou estejam congelados há mais de três anos. Entretanto, exige o consentimento dos genitores (§1º) e que o projeto de pesquisa ou terapia seja submetido à apreciação e aprovação dos comitês de ética em pesquisa das instituições que se propõem a realizá-lo (§2º).

Tal disposição perpassa a liberdade de expressão científica, que constitui direito fundamental garantido pelo artigo 5º, inciso IX, da Constituição Federal (BRASIL, 1988). É complementada pelas disposições do artigo 218, §1º, da Carta Magna (1988), que coloca como dever do Estado promover e incentivar o desenvolvimento científico, a pesquisa e a capacitação tecnológicas, sendo que a pesquisa científica básica deve receber daquele tratamento prioritário.

As células-tronco caracterizam-se pelo poder de divisão e de autocópias, o que as leva a ter potencial para a cura de doenças e para a regeneração de tecidos e órgãos doentes (CHRISTMANN, 2014, p. 20). Como explicam Leal Junior, Sanomya e Ferraro, citados por Christmann (2014, p. 18),

“são elementos primários encontrados em todos os organismos multicelulares que, devido à sua plasticidade, retêm a habilidade de se renovar por meio da divisão celular mitótica, podendo diferenciar-se em uma vasta gama de tipos de células especializadas e fazer cópias de si mesmas.”

Quando contidas no pré-embrião e no embrião, células totipotentes, têm capacidade de formar um novo indivíduo completo (CHRISTMANN, 2014, p. 18). Por isso sua manipulação requer cuidados e limites, para que não sejam violados direitos fundamentais, ainda que em nome da ciência.

Uma dos tópicos que envolve o tema é o descarte dos embriões que não mais se prestam às pesquisas. Nesta situação encontram-se os embriões considerados inviáveis por questões relacionadas com a própria técnica empregada, ou após certo período de congelamento, que reduz significativamente a possibilidade de gerar um novo ser humano (CHRISTMANN, 2014, p. 24). Por vezes, são deixados em “abandono e entulhando os serviços” nas clínicas de fertilização (CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA, 2013), já que “nem sempre os geradores dos embriões retornam para transferir os criopreservados” (LUNA, 2007).

É importante salientar que a Lei nº 11.105/2005 (BRASIL, 2005) somente permite a utilização de embriões excedentes ou supranumerários, isto é, aqueles que não foram implantados após procedimentos de fertilização in vitro, para não gerar gravidezes múltiplas (LOUREIRO, apud CHRISTMANN, 2014, p. 24). Igualmente, pela Resolução nº 2.013/2013 do Conselho Federal de Medicina (2013), o número máximo de embriões que podem ser transferidos para a receptora não pode ser superior a quatro, estando esse número relacionado à idade da mulher. Os embriões restantes podem ser criopreservados (congelados) em cilindros de nitrogênio e guardados para nova tentativa, se não ocorrer gravidez (LUNA, 2007).

Assim, graças ao avanço das técnicas reprodutivas, verifica-se o surgimento de um novo ente legal e social, o embrião extracorporal criado por fertilização in vitro, (STRATHERN, apud LUNA, 2007), que inspira reflexões sobre começo de vida, sendo terreno com forte interferência religiosa.

Tanto que no acórdão do Supremo Tribunal Federal proferido na Ação Direta de Constitucionalidade nº 3510-0/DF, em 2008 (BRASIL, 2008), foi descaracterizada a situação de aborto, com base no Direito Civil, que preconiza que a personalidade civil da pessoa começa com o nascimento com vida, assegurando-se, todavia, os direitos do nascituro (BRASIL, 2002).

Não obstante, os debates instalados são para sustentar (ou rebater) que a vida começa com a fecundação; para outros, no momento da fixação do zigoto no endométrio, fenômeno conhecido como nidação. Conforme for aceito um desses momentos, a análise da manipulação dos embriões e sua licitude, pela atual normativa vigente, é alterada profundamente, podendo ser vista como manipulação científica do próprio ser humano, já como sujeito de direitos (CHRISTIMANN, 2014, p. 18; 20) ou apenas de material celular ou biológico, cujo uso em pesquisas é lícito (LUNA, 2007).

Para a análise de todas essas questões, importante a orientação da bioética, definida como “ramo da ética que investiga os problemas que derivam especificamente da prática médica e biológica, o que inclui os limites das intervenções e experiências aceitáveis, além da razoabilidade da pesquisa genética e das suas aplicações” (SOARES, SOARES, MARQUES, 2014).

Sob o ponto de vista do biodireito, compreendido como “ramo do Direito que trata da teoria, da legislação e da jurisprudência relativas às normas reguladoras da conduta humana em face dos avanços da Medicina e da Biotecnologia” (SOARES, SOARES, MARQUES, 2014), tem-se a orientação ao respeito ao direito à vida, direito à saúde e ao planejamento familiar, como enfocado na referida decisão do Supremo Tribunal Federal.

Assim visto, verifica-se que a submissão do projeto de pesquisa ou terapia de embriões a um comitê de ética busca com que seja analisado sob o viés da bioética e do biodireito. Entretanto, o comitê de ética, ainda que represente a sociedade perante os projetos de pesquisa, com total autonomia para emitir seu parecer, favorável ou não (OLIVEIRA JUNIOR, 2014), é da própria instituição e esta pode ter interesse no projeto por diversos motivos. Em segundo lugar, nem a Lei Federal nº 11.105/2005 (BRASIL, 2005) nem seu regulamento, Decreto Federal nº 5.591/2005 (BRASIL, 2005) apontam a composição mínima dos comitês ou prevêem eventual controle externo sobre suas decisões ou possibilidade de recurso.

Pode-se pensar que o legislador foi comedido no regramento, comparado com a prática geral de definir princípios, objetivos e instrumentos de políticas públicas, como pode ser observado em outras tantas legislações (CHRISTMANN, 2014, p. 7), mas assim agiu, no caso dos comitês de ética em pesquisa, diante da autonomia das instituições, se estas se tratassem de universidades. Todavia, também nada foi legislado em relação a outras instituições de pesquisa. Apenas a Resolução nº 196/96 do Conselho Nacional de Saúde (1996) aponta a composição dos comitês de ética em pesquisa e a necessidade de registro na Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep), esta vinculada ao Ministério de Saúde.

Além disso, o histórico de tramitação da Lei nº 11.105/2005 indica que a falta da costumeira “exuberância regratória”, para usar as palavras do Ministro Ayres Britto (BRASIL, 2008), deu-se sobretudo pela pressa em aprovar a normativa que iria liberar o comércio de soja transgênica. Buscou compatibilizar flexibilizações, a partir de dispensas de exigências legais, concedidas por medidas provisórias, com a normatização sobre biossegurança (AZEVEDO, apud CHRISTMANN, 2014, p. 10) e, com isso, deixou de aprofundar aspectos fundamentais, de ordem material ou ética, que podem afetar a manipulação genética de seres vivos e a biossegurança.





REFERÊNCIAS

BRASIL, Constituição Da República Federativa Do Brasil - 1988. Diário Oficial da União de 05/10/1988, P. 1 (Anexo)

BRASIL, Lei nº 10.406, de 10 Jan de 2002. Institui o Código Civil. Diario Oficial da União, 11 Jan 2002, P. 1.

BRASIL, Lei nº 11.105, de 24 Mar 2005. Regulamenta os incisos II, IV e V do Par. 1º do Art. 225 da Constituição Federal, Estabelece Normas de Segurança e Mecanismos de Fiscalização de Atividades que envolvam Organismos Geneticamente Modificados - OGM e Seus Derivados, cria o Conselho Nacional De Biossegurança - CNBS, Reestrutura a Comissão Técnica Nacional de Biossegurança - CTNbio, Dispõe sobre a Política Nacional de Biossegurança - PNB, revoga A Lei Nº 8.974, de 5 de Janeiro de 1995, e a Medida Provisória Nº 2.191-9, de 23 de Agosto de 2001, e os Arts. 5º, 6º, 7º, 8º, 9º, 10 e 16 da Lei Nº 10.814, de 15 de dezembro de 2003, e dá outras providências. Diário Oficial da União, 28 Mar 2005, p. 1 28/03/2005, P. 1

BRASIL, Decreto nº 5.591, 22 Nov 2005. Regulamenta dispositivos da Lei no 11.105, de 24 de março de 2005, que regulamenta os incisos II, IV e V do § 1odo art. 225 da Constituição, e dá outras providências. Diário Oficial da União, de 23 Nov 2005, P. 1.

BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconsticuionalidade nº 3.510. Relator: Min. Carlos Ayres Britto. Julgamento em 29/05/2008. Diário da Justiça Eletrônico, Brasília, 28 Mai. 2010. Disponível em: http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=611723. Acesso em 06 Ago 2014.

CHRISTMANN, Luiza Landerdahl. Biotecnologia, biossegurança e bioética: a vida em questão. Temais Atuais de Direito Ambiental. Palhoça ; Unisul Virtual, 2014a.

CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA, Resolução nº 2.013/2013, de 16 Abr 2013, publicada no Diário Oficial da União de 09 de maio de 2013, Seção I, p. 119. Disponível em http://www.portalmedico.org.br/resolucoes/CFM/2013/2013_2013.pdf

CONSELHO NACIONAL DE SAÚDE. Resolução CNS nº 196/96, de 10 Out 1996. Disponível em <http://conselho.saude.gov.br/web_comissoes/conep/aquivos/resolucoes/resolucoes.htm. Acesso em 06 Ago 2014.
LUNA, Naara. A personalização do embrião humano: da transcendência na biologia. Mana vol.13 no.2 Rio de Janeiro Oct. 2007. Disponível em http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0104-93132007000200005&script=sci_arttext. Acesso em 06 Ago 2014.

OLIVEIRA JUNIOR, Eudes Quintino. A Ética, A Bioética e os Procedimentos Com Células-Tronco. Disponível em http://www.relampa.org.br/detalhe_artigo.asp?id=100. Acesso em 06 Ago 2014.
SOARES, Saulo Cerqueira de Aguiar, SOARES, Ivna Maria Mello, MARQUES Herbert de Souza . Reflexões em ética, bioética e biodireito. Revista Âmbito Jurídico, Rio Grande, s/d. Disponível em < http://www.ambito-juridico.com.br/site/index.php?artigo_id=7601&n_link=revista_artigos_leitura>. Acesso em 06 Ago 2014.






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