O sagrado direito à água

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“Não faz sentido uma empresa pública ter ações comercializadas nas bolsas de Nova York e de São Paulo enquanto a população sofre sem serviços básicos. Antes de repartir lucros, é preciso investir e garantir que todos tenham acesso à água. O número de pessoas que ainda vive sem saneamento no Brasil, à sombra de uma sociedade que se desenvolve rapidamente é alarmante”.

Essas frases podiam perfeitamente fazer parte da troca de acusações que tem marcado a eleição. Mas não. Elas foram ditas terça-feira, em Genebra, num evento da ONU, pela portuguesa Catarina Albuquerque, representante da entidade para assuntos de saneamento. A empresa em questão é a Sabesp (Companhia de Saneamento de São Paulo), mas as críticas de Catarina atingem também o governo federal, por não estar cumprindo o dever de garantir direitos fundamentais à população. Os dados indicam que 114 milhões de brasileiros ainda não possuem uma solução sanitária apropriada.

A representante da ONU esteve por aqui no final do ano passado. Ela ficou dez dias visitando áreas carentes em Brasília, São Paulo, Fortaleza, Belém e Rio de Janeiro. Além de se reunir com autoridades e ouvir a versão de empresas e ONGs. Só agora o resultado do trabalho foi divulgado. Dentre outras coisas, ele revela que um abastecimento de água regular e de qualidade ainda é uma realidade distante para 77 milhões de pessoas. O equivalente a todos os habitantes da Alemanha.

No mesmo dia em que Catarina Albuquerque discursava na Suíça, a Sabesp divulgava os últimos números sobre o nível de água do Sistema Cantareira, que abastece a região. Ele caiu mais 0,4 pontos percentuais e atingiu a incrível marca de 10,1%. Em maio, quando a reserva técnica começou a ser usada, estava em 26,7%.

É verdade que São Paulo enfrenta o período mais seco em 45 anos, mas não dá para colocar a culpa toda em São Pedro. Há mais de dez anos os governos locais vêm sendo alertados para a necessidade de investimentos que reduzam a dependência do Sistema Cantareira. Antes de apelar para o volume morto, seria preciso iniciar um racionamento ou fazer com que os consumidores que gastam mais pagassem mais. Para complicar, as chances de o problema ser resolvido na temporada de chuvas são de apenas 25%. É preciso parar com as medidas paliativas e investir.

Um dos caminhos possíveis, inteligente e barato, é o chamado Pagamento por Serviços Ambientais (PSA). Foi o que fez, nos anos 80, o governo de Nova York. Eles tinham duas opções para melhorar o abastecimento da cidade: investir no tratamento da água poluída da bacia de Catskill ou na recuperação da qualidade via conservação e restauração. O primeiro caminho custaria entre 4 e 8 bilhões de dólares. O segundo, 1,5 bilhão. A escolha foi pagar os produtores rurais para que recuperassem as matas ciliares, recolhessem os dejetos dos animais e investissem em biodigestores. Hoje, Nova York tem o maior sistema natural de abastecimento de água dos EUA.

Experiências localizadas já existem no Brasil, usadas não apenas para a recuperação dos rios, mas também para a manutenção da biodiversidade e o sequestro de carbono. Foi graças ao PSA que agricultores do Acre abandonaram o uso do fogo na limpeza dos terrenos. Nem sempre os pagamentos são feitos em dinheiro. No Amazonas, os beneficiários trocam os serviços ambientais por rádios, geradores e treinamento.

O que falta no país é uma legislação que incentive e regulamente essas ações. Desde 2007 tramitam no Congresso vários projetos de lei com o objetivo de criar uma Política Nacional de Pagamento por Serviços Ambientais (PNPSA). Ela indicaria as áreas públicas e privadas que pudessem fazer parte dos projetos, os serviços a serem negociados, as formas de negociação e os tipos de contrato. Além de criar um fundo público e estabelecer os benefícios fiscais.

É esse o problema. A área econômica e a receita relutam em aprovar novos incentivos. Um movimento suprapartidário, envolvendo ONGs e entidades empresariais tenta fazer com que um texto de consenso seja aprovado. Ontem, o Conselho Empresarial Brasileiro para o Desenvolvimento Sustentável (CEBDS) divulgou um documento defendendo a urgência do tema e sugerindo que a lei indique áreas prioritárias e incentive investimentos voluntários. Difícil acreditar que em época de campanha e com os ânimos exaltados algo venha a ser aprovado. Mas fica a certeza de que, assim como na saúde e em outras áreas, prevenir é sempre melhor do que remediar.

Fonte: VIEIRA, Agostinho. O Sagrado Direito à água. O Globo. 11 Set. 2014. Disponível em http://oglobo.globo.com/blogs/ecoverde/. Acesso em 13 Set. 2014. 

Imagem: http://sementecabocla.files.wordpress.com/2013/05/agua5.jpg. Acesso em 12 Set. 2014.

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